Expedição OMUNGA na Ilha do Marajó: dilema entre a sabedoria da natureza e a educação social

Relatos da visita a Chaves e Melgaço, em julho de 2021, para pesquisas de campo e alinhamento com os novos gestores municipais sobre o novo projeto da OMUNGA

 

Substituir 1ºC da Capital Catarinense pelos 35ºC de Macapá, no Norte do país, foi o primeiro grande passo da Expedição OMUNGA na Ilha do Marajó. Uma mudança expressiva, mas que já me encheu de entusiasmo. Estar nas regiões onde a OMUNGA atua é o que me reconecta com o meu propósito de vida. As dez horas de navegação até Chaves, completamente isolado do mundo e da internet, em meio a um rio com imensidão de mar também contribuíram para uma reflexão profunda que me levou para outra atmosfera.

 

Para chegar até Chaves são cerca de dez horas de navegação. Foto: Acervo OMUNGA

 

Mais do que observar, ali eu pude sentir o Rio Amazonas: a diversidade de alimentos não industrializados, o acesso escasso a tecnologias que já são intrínsecas à minha rotina, a liberdade de ir e vir controlada pela vontade da natureza, o consumo de água que depende da chuva e de poços artesianos, o modo como as pessoas se adequam para obter itens básicos de consumo. E, neste contexto tão adverso, foi inevitável o questionamento: em que mundo vivemos, mesmo? O que realmente importa?

 

Chegando na Ilha do Marajó, percebi que quase não havia carros. Além de ser uma das cidades mais vulneráveis do país, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (PND/2010), boa parte do município de Chaves, no Pará, está submerso em lodo, o que dificulta muito qualquer deslocamento tradicional. Assim, eis que os meios de transporte mais utilizados são motos, bicicletas, diferentes tipos de barco, cavalos e… Búfalos! Sim, em trajetos mais longos, principalmente com carregamentos, essa é a única forma para ir de um lugar a outro.

 

 

Transporte animal, como os búfalos, é muito utilizado nas comunidades rurais do Pará. Foto: Acervo OMUNGA

 

É muito interessante que moradores de cidades com esse contexto me trazem um saudosismo benevolente, sempre me sinto recebido como um velho amigo por onde passo. Ao apresentar nossos propósitos, objetivos e projetos para os agentes públicos da Secretaria de Educação, Secretaria de Saúde e Sindicato dos professores, fomos recebidos com muita ansiedade e brilho no olhar. “Vocês são realmente capazes de realizar tudo isso?”, foi a pergunta mais frequente. Lá, iremos fazer formações humanizadas, distribuir livros nas escolas municipais e construir a primeira biblioteca da cidade.

 

Visitas às comunidades rurais para imersão no cotidiano dos moradores

 

 

Realizamos visitas as comunidades rurais da cidade para imersão no cotidiano dos moradores. Foto: Acervo OMUNGA

 

Durante nossos encontros, tive o privilégio de ser convidado para conhecer algumas das regiões rurais do interior de Chaves, como Apani, Jucá e Santa Mônica. Inicialmente, acreditei ser apenas mais um habitual estudo de território. Mas, logo no primeiro momento, entendi que seria um laboratório de emoções: esperamos quatro horas embaixo de um sol escaldante, sem direito à reclamação. “Não se atravesse com Rio Amazonas, primeiro ele faz os percursos dele e depois faremos o nosso. Primeiro o Rio, primeiro a Natureza, nós viemos em último lugar” disse o comandante.

 

Eu nunca tinha visto a Pororoca, um fenômeno que atrai a atenção do mundo inteiro. O choque das águas do rio com o oceano, a maré alta e a influência da lua, fazem surgir uma onda devastadora, que percorre quilômetros até se chocar com as margens do rio de uma forma majestosa. Veja o vídeo que recebi de um professor que chegou muito perto do local onde a Pororoca “estourou”.

 

 

Foto: Acervo OMUNGA

 

Ali, eu compreendi o fascínio das pessoas pelo Amazonas. Existe muito respeito às condições que o rio impõe para navegação, e à sua existência em si. Todos aqueles com quem conversei deixaram claro que se trata de uma “entidade” muita “viva”, merecedora de veneração, cuidado e respeito. Bem, essa aventura de barco através da alma da maior floresta do mundo durou três horas, seguidas de mais duas horas cavalgando no lodo e mais uma hora de rabeta (um barco pequeno e motorizado).

 

 

Foto: Acervo OMUNGA

 

Finalmente, chegamos à uma casa adaptada para funcionar como escola, local onde passamos a noite. É comum na ilha as pessoas cederem ou alugarem parte de suas moradias para que alunos de determinada região possam ter aulas com professores da cidade, que também passam a morar por ali e voltar na zona urbana uma vez por mês, para buscar mantimentos. Mas já estava escuro e era tanto cansaço, que não me importei com as inúmeras aranhas, baratas, mosquitos e até uma rã que dividiam quarto comigo naquela noite.

 

Me abracei com a rede e apaguei.

 

Foto: Acervo OMUNGA

 

Ao acordar, uma surpresa: que lugar lindo! A casa/escola estava rodeada pela água da cheia (que acontece de junho até dezembro), pelo verde das matas, animais e muitos pássaros. A horta ficava numa canoa e os porcos em um curral improvisado com palafita. Mas tive pouco tempo de apreciação antes de começar a receber visitas. Todos da comunidade queriam dialogar e saber do projeto, dos vizinhos ao pastor daquela região. Queriam saber se a história do “entregador de livros” era verdade.

 

 

Casa/escola estava rodeada pela água da cheia, pelo verde das matas, animais e muitos pássaros. Foto: Acervo OMUNGA

 

Vivência do cotidiano das comunidades ribeirinhas do Pará 

 

Alguns compartilhavam suas preocupações em “mandar” os filhos para a cidade em função do risco de exposição às drogas, violência, preconceito com quem é do interior e o alto custo de se manter um filho na cidade. Em contraponto, também temiam pelo baixo nível de escolarização de seus filhos.

 

Valores são mais seguros que uma vida endinheirada. E valores, posso dar aqui para meus filhos sem colocá-los em risco”, disse o senhor conhecido por Riquinho, que há 57 anos mora no mesmo local.

 

Como eu poderia contestar?

 

Foto: Acervo OMUNGA

 

Também conhecemos a casa do senhor Denis, em Jucá, após duas horas inteiras de deslocamento em búfalos em meio ao isolamento inquestionável, repleto de lodo, atravessando vários rios e áreas alagadas. Ele cedeu um espaço de sua casa para que dez alunos tivessem uma sala de aula e um quarto para que o professor Domingos pudesse morar durante o período letivo. Lá, fomos incrivelmente bem recebidos com café da manhã, um almoço delicioso e até cachorro-quente no lanche da tarde, acompanhado de uma pausa na rede, para contemplação.

 

Enquanto estive lá, foi possível participar de alguns diálogos e compreender as percepções daquelas pessoas sobre a vida, como encontram soluções para seus problemas e como a ajuda mútua os transforma em uma grande família. Ouvi sobre a saga para conseguir instalar uma escola na região, sobre os problemas com alimentos e água, vi um grupo de homens indo à caça na mata, vi outro grupo organizando mais calhas para quando a chuva vier.

 

Professor Domingos foi o nosso guia, durante a expedição. Foto: Acervo OMUNGA

 

Em determinado momento, ouvi o senhor Denis relatar como um de seus filhos morreu em casa por questões de saúde que ele desconhece. Mas logo em seguida, presenciei seu agradecimento por todos os aprendizados que recebeu do falecido e pela oportunidade de poder praticá-los com os outros quatro que vivem nas proximidades. É uma visão de mundo que, apesar de toda a pobreza, desconhece o vitimismo, a terceirização de responsabilidades e a indisposição para o trabalho.

 

Professor Domingos preparando o nosso almoço no barco. Foto: Acervo OMUNGA

 

Essa sabedoria, construída com vivências, ancestralidade, respeito e cuidado com cada indivíduo, independente das origens, é algo incrível que a nossa sociedade como um todo precisa urgentemente recuperar. Passei toda a volta buscando organizar tantos aprendizados e ideias, mas meu misto de euforia e alegria não oportunizaram a lucidez necessária. Finalizando a experiência, fui agraciado com uma carne de jacaré, iguaria local, e um pôr-do-sol que fez eu me sentir verdadeiramente na presença de Deus.

 

 

Foto: Acervo OMUNGA

 

O meu desejo mais sincero é que cada assinante, doador, parceiro e membro do nosso time pudesse viver experiências como essa, já que, mesmo com muitas fotos, vídeos e relatos, é impossível dimensionar o que significa cada ajuda e colaboração para a vida dessas pessoas que são praticamente invisíveis aos olhos da sociedade. É um meio tão adverso, distante da realidade da maioria, onde os professores vivem desafios muito maiores para potencializar transformações sociais, que eu não me canso de agradecer a você, que estabelece essa relação de solidariedade com pessoas que nem conhece, de lugares inexplorados do mapa.

 

 

Foto: Acervo OMUNGA

Saiba mais sobre o projeto OMUNGA na Ilha do Marajó

 

Construir um cenário mais favorável para uma vida com liberdade, autonomia e poder de escolha é tanto fonte da minha motivação quanto da minha gratidão, pelas oportunidades de refletir sobre a vida, sobre os meus valores, prioridades e buscas. Por conseguir, a cada dia, ampliar minha visão de mundo e o impacto das minhas ações. Nesse momento, aguardo autorização para iniciar a captação de recursos do Projeto OMUNGA na Ilha do Marajó, que irá atender cerca de 16 mil crianças e 1 mil professores.

 

 

Projeto OMUNGA na Ilha do Marajó, que irá atender cerca de 16 mil crianças e 1 mil professores. Foto: Acervo OMUNGA

 

O planejamento contempla a construção de uma biblioteca, oito ciclos de formação educativo-cultural, a produção de um documentário e a publicação de um livro que contemplará as riquezas culturais e humanas das cidades beneficiadas. Ele será viabilizado pela Lei de Incentivo à Cultura e submetido ao Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic) para análise e avaliação da Secretaria Especial da Cultura, do Ministério do Turismo.

 

Muito obrigada por participar dessa jornada conosco!

 

Até a próxima expedição OMUNGA!
Roberto Pascoal
Empreendedor Social e Fundador da OMUNGA Grife Social e Instituto